Essa é a pergunta mais ouvida por Adnan Ali, um paquistanês que mora no Rio e luta por uma difícil causa: a aceitação de homossexuais pelo islã.
Num colégio interno de Lahore, no Paquistão, o menino sunita Adnan Ali, então com 13 anos, mal podia esperar pelas orações do fim da tarde. Na mais importante prece do dia, estudantes das duas correntes do islã – sunitas e xiitas – se reuniam. Era a oportunidade que ele tinha de ver Jamal, um jovem xiita de 15 anos que estudava em outro pavilhão, destinado aos alunos mais velhos. Durante as preces, os dois cruzavam a linha que os separava para orar lado a lado – os sunitas, maioria, rezavam à frente da mesquita, e os xiitas ficavam na parte de trás. De vez em quando, enquanto faziam os movimentos em respeito a Alá, suas mãos se tocavam, em um ritual que se repetia todos os dias.
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O desafio de Adnan começou em casa. Quando era adolescente, seus pais abriram uma carta amorosa de um jovem endereçada a ele. Além de ter recebido uma surra, Adnan teve de prometer que jamais falaria com o remetente. Ele diz se lembrar de um vizinho arrastado por policiais para fora de casa depois de ser flagrado num ato sexual com outro homem. Adnan nunca mais o viu. “Geralmente não se sobrevive à punição”, afirma. No Paquistão, onde a lei islâmica tem forte influência sobre a legislação civil, a homossexualidade ainda pode ser punida com a pena capital.
A família de Adnan só tolerava sua condição porque era praticamente sustentada pelo dinheiro de seu trabalho, principalmente enquanto esteve empregado na área de reservas do hotel Marriott de Islamabad, capital paquistanesa. “Isso me dava um passe livre para fazer o que quisesse. De certa forma, comprei a aceitação de meus pais.” Em 1996, ele ganhou uma bolsa para estudar produção teatral na Inglaterra e foi embora. Três anos depois, já integrado à pequena comunidade de gays assumidos de origem muçulmana no Reino Unido, Adnan fundou a representação britânica da ONG americana Al-Fatiha, destinada a auxiliar essa minoria no mundo islâmico – Al-Fatiha, que significa “a abertura” em árabe, é o nome do primeiro capítulo do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos. O trabalho de Adnan virou tema de um documentário da rede de TV britânica Channel 4, em 2006. A aparição no programa lhe rendeu umafatwa (sentença) de líderes religiosos islâmicos, condenando-o à morte – a mesma decisão aplicada nos anos 90 ao escritor indiano Salman Rushdie por sua obra Versos satânicos. Mas Adnan diz não temer a sentença: “Não significa absolutamente nada para mim. Continuo a viver minha vida normal e a mostrar meu rosto”.
Adnan reconhece a dificuldade de sua luta. Afirma que nem mesmo a comunidade gay sabe lidar muito bem com seus integrantes do islã. “A reação costuma ser: ‘Gay e muçulmano, como assim?’.” Dentro do islamismo, aceitar gays seria o mesmo que reescrever o Alcorão, na visão das autoridades religiosas. “Tudo o que Deus criou foi em forma de casal. Homem, animais e até plantas. Nada do mesmo sexo produz frutos”, afirma o xeque xiita Ali Abou Raya, imame (sacerdote) da Mesquita Mohammad Mensageiro de Deus, em São Paulo. “É preciso deixar claro que o homossexualismo nunca será liberado na jurisprudência islâmica. A orientação é direta e clara.”
Abou Raya cita duas passagens do Alcorão para justificar sua posição. Ambas descrevem o que teria acontecido aos habitantes de Sodoma e Gomorra. Na sura (capítulo) 27, versículo 55, o livro sagrado faz referência a homens que se aproximam de outros homens e os chama de “um povo de insensatos”. O outro trecho é a sura 11, versículo 78, no qual o profeta Lot pede a seu povo, “que desde antanho havia cometido obscenidades”, que tema a Deus. Para Abou Raya, é um recado aos gays. “O profeta os adverte a não cometer essas relações”, diz. Militantes gays como Adnan argumentam que as passagens referem-se a atos de sodomia e de estupro praticados entre pessoas do mesmo sexo, e não a relações homossexuais consensuais, entre dois adultos.
Para a religião islâmica, a homossexualidade é vista como algo reversível, ou seja, um pecado do qual é possível se redimir. “Se um muçulmano homossexual acredita que sua condição seja natural, ele deixa de fazer parte do islamismo. Mas se ele reconhece que está passando por uma dificuldade, um problema psicológico, então passa a ser um pecador que deve receber ajuda de sua comunidade religiosa”, afirma o xeque sunita Jihad Hassan Hammadeh, presidente do Conselho de Ética da União Nacional das Entidades Islâmicas. Hammadeh afirma que o islamismo condena o preconceito, mas reconhece que nem sempre “algumas pessoas” dentro do mundo islâmico agem de forma tolerante. Basta recordar uma declaração do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, ao discursar em 2007 para alunos da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. Respondendo à pergunta de um estudante sobre como gays eram tratados no Irã, disse: “Lá não há gays como em seu país; não temos esse fenômeno”.
No Rio de Janeiro, há pouco menos de um ano, Adnan ainda está conhecendo o universo GLS da cidade. Diz estar com vontade de ir a um bar gay na Gávea e conheceu alguns ativistas durante um seminário anti-homofobia. “Não vou muito à praia, embora goste de sentar na areia e ler um livro. Já fui ao Posto 9 (em Ipanema) muitas vezes, e é legal ver as bandeiras com o símbolo gay (arco-íris) tremulando”, afirma. Como no Brasil a comunidade muçulmana é pequena, ele dá apoio a gays brasileiros de qualquer credo, por meio de um círculo de amigos na internet. Assim conheceu um jovem baiano que, ao se descobrir gay, passou a pensar em suicídio. “Eu tenho conversado com ele para fazê-lo desistir da ideia. Gosto de pensar que continuo útil pela minha causa.”
A matéria é da Revista Época. aUTORES: FERNANDO SCHELLER COM JULIANO MACHADO